terça-feira, agosto 15, 2006

Agostinho

AGOSTINHO

Chego aos campos e vastos palácios da memória, onde estão tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie. Ali repousa tudo o que a ela foi entregue, que o esquecimento ainda não absolveu nem sepultou. Aí estão presentes o céu, a terra e o mar, com todos os pormenores que neles pude perceber pelos sentidos exceto os que esqueci. É lá que me encontro a mim mesmo.

Que amo quando te amo? Não amo a formosura corporal, nem a glória temporal, nem a claridade da luz, tão amiga destes meus olhos, nem as doces melodias das canções de todo gênero, nem o suave cheiro das flores, dos perfumes ou dos aromas, nem o maná ou o mel, nem os membros tão flexíveis aos abraços da carne. Nada disto amo, quando amo o meu Deus. E contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento e um abraço, quando amo o meu Deus, luz, voz, perfume e abraço do homem interior, onde brilha para a minha alma uma luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma voz que o tempo não arrebata, onde se exala um perfume que o vento não esparge, onde se saboreia uma comida que a sofreguidão não diminui, onde se sente um contato que a saciedade não desfaz.
Eis o que amo, quando amo o meu Deus!

Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-te! Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava contigo!
Retinha-me longe de ti aquilo que não existiria se não existisse em ti. Porém chamaste-me com uma voz tão forte que rompeste a minha surdez! Brilhaste, cintilaste e logo afugentaste a minha cegueira! Exalaste perfume: respirei-o, suspirando por ti. Saboreei-te e agora tenho fome e sede de ti. Tocaste-me e ardi no desejo da tua paz.

Dai-me o que me ordenais e ordenai-me o que quiseres.


Quem poderá prender o coração do homem, para que pare e veja como a eternidade imóvel determina o futuro e o passado, não sendo ela nem passado nem futuro? Poderá, porventura, a minha mão que escreve explicar isto? Poderá a atividade da minha língua pela palavra realizar empresa tão grandiosa?

O tempo é um vestígio da eternidade.

Oh! Que admirável profundeza da tua Escritura. Oh! Que admirável profundeza, ó meu Deus, que admirável profundeza! Atemoriza-nos lançar os olhos para ela: temor de respeito e temor de amor.

A matéria informe é também precedida pela eternidade do Criador, que a fez para que fossem extraídas do nada as coisas.

Dai-me a mim, ó meu Deus; entregai-te a mim. Eu amo-te; e, se ainda é pouco, fazei que te ame com mais força. Não posso avaliar quanto amor me falta para ter o suficiente a fim de mina vida correr para o teu regaço e não sair dele, enquanto se não esconder nos segredos de teu rosto. Uma só coisa reconheço: é que tudo me corre mal fora de ti, e não só à volta de mim, mas até em mim. Toda abundância que não é o meu Deus, é para mim indigência.

Ó Deus tão alto, tão excelente, tão poderoso, tão onipotente, tão misericordioso e tão justo, tão oculto e tão presente, tão formoso e tão forte, estável e incompreensível, imutável e tudo mudando, nunca novo e nunca antigo.

Procurei o que era a maldade e não encontrei uma substância, mas sim uma perversão da vontade desviada da substância suprema – de ti ó Deus.

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